O cinema tem o poder de se apropriar de qualquer personagem da história e utilizá-lo como ferramenta ideológica quando a produção se encontra em mãos competentes.
Golgotha é um filme francês de 1935 dirigido por Julien Duvivier, tendo como elenco principal Robert Le Vigan no papel de Jesus, Harry Baur no papel de Herodes Antipas, Jean Gabin no papel de Pilatos, Charles Granval no papel de Caifás e André Bacqué no papel de Anás.

A história da carreira cinematográfica de Julien Duvivier é o oposto do que comumente ocorria durante a época em que o cinema mudo começou a dar espação ao cinema falado. Enquanto a maioria dos diretores perdiam seu poder criativo com essa mudança, Duvivier, que nunca fora considerado um diretor importante, emergia como um dos maiores representantes do movimento estético cinematográfico chamado de “Realismo Poético”, movimento que se iniciou no final dos anos 20 e perdurou por todo os anos 30. Golgotha ainda não é um filme pertencente à época considerada áurea do cinema de Duvivier, porém antecedeu em poucos meses a filmes pelos quais o diretor se tornaria amplamente conhecido, como Le Golen, La Bandeira e Pepe Le Moko.
O filme narra os momentos finais da vida de Jesus: mostra desde sua chegada em Jerusalém até à ressurreição. Golgotha apresenta poucas falas de Jesus, nenhum milagre, um Jesus que não se envolve com o povo e não se pronuncia sobre sua própria sentença. Le Vigan dá vida a um Jesus pouco atrativo, que pouco ensina nos momentos finais de sua missão.
Duvivier pode então ter desperdiçado uma oportunidade com o novo cinema falado de desenvolver um Jesus que finalmente pudesse passar seus ensinamentos e contar as suas parábolas. No entanto, o que na época foi criticado fazia parte de uma mise-en-scène bem elaborada, em que Jesus não está inserido naquele contexto para ensinar, mas apenas para morrer.
Golgotha não é um filme para entreter ou evangelizar, é uma propaganda antissemita eficiente e extremamente elaborada. Tal afirmação pode parecer conflituosa para alguns que não se aprofundaram nas questões do holocausto e do antissemitismo, pois a França, graças ao papel que desempenhou durante a segunda guerra, sugere que dentro de seu ideal nacional nunca houve antissemitismo. A derrota e as imposições alemãs tonaram a França ao longo da história aparentemente uma vítima de Hitler.
O longa é iniciado com Jesus entrando em Jerusalém. Logo nessa cena percebemos alguns pontos dignos de nota: Jesus é representado por um plano subjetivo. Não vemos Jesus, mas vimos do alto o corpo de judeus ensandecidos em torno dele; de forma panorâmica, a multidão judia é enquadrada em plongée, diminuído; o sinédrio é enquadrado em contra-plongée no pináculo do Templo, sendo elevado; Jesus entra no Templo e ignora a multidão. O espectador vê subjetivamente a multidão ignorada através dos olhos de Jesus. Logo nos minutos iniciais do filme pode-se perceber alguns posicionamentos através das escolhas estilísticas do autor: Jesus não se importa com os judeus, pois não direciona uma palavra a eles, e também por não ter sido enquadrado junto ao povo, tendo Duvivier escolhido a subjetividade da câmera ao invés de o inserir na cena; percebe-se também que, através do que é enquadrado em plongée e em contraplongée, o povo é apresentado como inferior ao sinédrio, que serviria como massa de manobra para os ideais de Caifás e Anás.

Essa estrutura se mantém ao longo de toda a narrativa, pois o filme se empenha em tornar Jesus a vítima das conspirações do povo judeu. Jesus praticamente não tem voz, praticamente é um coadjuvante, o que faz com que os outros personagens sejam mais importantes para a narrativa do que o próprio Jesus. Cláudia Prócula, assim como Pilatos, ambos romanos, tentam ao máximo salvar Jesus, dialogando com o sinédrio, argumentando que Jesus nada fez de errado. Pilatos é sempre enquadrado pequeno, abaixo de Caifás, como se nada tivesse a fazer perante a ameaça do sinédrio. Caifás e Anás são os arquitetos de um complô para incriminar Jesus. Eles são sempre mostrados com uma iluminação dúbia, geralmente juntos a outros membros do sinédrio, inseridos em enquadramentos bastante fechados, como se estivessem sempre a sussurrar ardilosamente. Judas é o traidor que não aguenta a pressão à qual fora submetido pelo sinédrio. Mesmo sendo seguidor do messias, foi corrompido pelas artimanhas dos judeus.

No entanto, o principal papel recai sobre as massas, o povo judeu, que presencia todas as partes do acontecimento. Durante o complô para incriminar Jesus, Duvivier ilustra Pilatos como o salvador de Jesus, e Caifás e Anas como os autores da morte de Jesus. A partir do momento em que Pilatos se eleva perante à multidão para perguntar quem seria libertado entre Jesus ou Barrabás, a massa de judeus desempenha um papel preponderante. Durante a indagação de Pilatos, funcionários do sinédrio se inserem na multidão e subornam as pessoas que ali estão para libertarem Barrabás. As falas são: “Caifás pagará”. “Ganharemos dinheiro”.
Na tentativa de salvar Jesus, Pilatos recorre ao açoite de Jesus, e nesse momento as atenções se voltam novamente para a multidão. A cena do julgamento é cortada para a do flagelamento. Jesus pouco aparece em cena e os açoites são ouvidos em off. Enquanto isso, em uma grade que dá para o lugar onde Jesus estava sendo flagelado, os judeus se aglomeram de forma ensandecida, literalmente subindo uns sobre os outros, com os olhos esbugalhados, deliciando-se com a cena. As pessoas mostram suas faces retorcidas e até desmaiam de deleite. No fim da flagelação, um dos açoitadores vai até essa grade e faz um gesto rápido como com o chicote para fazer o sangue de Jesus salpicar sobre a turba.
Logo depois é iniciada a cena em que Pilatos lava as mãos perante a multidão e diz: “Sou inocente do sangue desse justo, isso é problema vosso”. Em um travelling para o rosto de Jesus, se escuta em off: “Que seu sangue caia sobre nós e nossos filhos”. A multidão responde: “Sim”. Passado esse momento, a Via Crucis é iniciada. A cena toda é suficientemente rápida, geralmente gravada panoramicamente, e Jesus não é destacado claramente da multidão. As poucas cenas em que Jesus tem maior destaque é quando ele cai e um grupo de crianças surge para apedrejá-lo. Depois disso, tudo é retratado de forma simples. Jesus perdoa o povo, perdoa o criminoso, dizendo que que estará com ele no reino de Deus e morre.
O filme é uma síntese de como a figura de Jesus pôde ao longo da história representar os momentos históricos nos quais eles estão inseridos. No caso de Golgotha, Duvivier realiza uma contundente propaganda antissemita sustentada por um ator abertamente envolvido com entidades antissemitas francesas (Le Vigan). Torna-se evidente que o cinema tem o poder de se apropriar de qualquer personagem da história e utilizá-lo como ferramenta ideológica quando a produção se encontra em mãos competentes.